Das arrebatadoras


Dia 20. Essa época do mês é terrível para qualquer solteiro que se preze. A essa altura a conta corrente já está gritando por socorro, implorando uma nova injeção de ânimos. Decidi que não compraria mais nenhuma das minhas "besteirinhas" após a ida à Feira do Livro. Comi algo qualquer na hora do almoço e entrei numa dessas lojas estilo conveniência. "Fifa - O melhor do Século" na sessão de DVDs por mínimos R$ 10,00. Peguei, acolhi-o em meus braços tal como uma mãe faz com um recém-nascido e fui pra fila tomar a guarda da criança. Assim, sem pensar ou pestanejar, tamanha é minha paixão por esse esporte. Juro, acreditem ou não vocês, preferia ler um bom livro sobre o assunto. Preferia ainda, que o Glorioso Nelson, o Rodrigues Pó de Arroz, fosse ainda vivo e embelezasse as páginas de qualquer jornal ou revista com suas crônicas apaixonadas. Não tive o prazer de ver Nelson em atividade, apenas imagino eu, com tamanha curiosidade, o que seria o Glorioso hoje em dia, narrando alguns lances de Romário. Tive porém o imenso orgasmo, (todos os praticantes de sexo devem, ou deveriam saber que esse é um estágio depois do prazer) de ler as melhores crônicas de Nelson desde 50, em nossa pífia atuação na final da copa até a desacreditada seleção do tri, no México. Posso-lhes afirmar que lá vivi, acompanhei os dribles do Crioulo Pelé, o fôlego de Jairzinho, as vaias a Júlio César e até os problemas do Mané, o Garrincha. Se notarem, não há (por omissão proposital) nenhum Flamenguista dentre os citados, tão imparcial é minha paixão quando trato esse esporte como um todo. Tão imparcial era Nélson. Tão apaixonado era Nélson. Que saudades de Nélson...

-Oras! O que entende esse miserável desdentado Flamenguista sobre futebol?

Dizia minha mãe que eu dava tantos chutes em sua barriga que meu pai gabava-se de ter feito um time inteiro, incluindo os suplentes de uma só vez. Assim, cresci, apaixonado por futebol. Andei as voltas por alguns clubes, namorei a bola na maior parte da minha adolescência, ganhei algumas medalhas e troféus, mas como sempre digo, a vida não é nada justa. Simplesmente não deu. E assim foi.
Ainda em minha área após a carreira frustrada, não fiquei longe dos esportes.
Administrei a rede do maior jornal esportivo do Rio de Janeiro. Era um troca troca de funções, e matérias e times pior que o troca troca de um tal ex presidente Americano (Americano dos USA, e não do nosso querido América do Rio de Janeiro, segundo time de todo Carioca e tristemente recém rebaixado para a segunda divisão) com sua então estagiária. Não havia uma alma sã que batesse o pé com careca, presidente do jornal e falasse: -Eu quero escrever SÓ, e tão somente SÓ sobre futebol. Sim, sejamos flexíveis. Tudo bem que seja só sobre o malandreado campeonato Carioca, ou sobre o frio Paulistão ou sobre o vigoroso campeonato Gaúcho. Mas que fosse feito com paixão.

Uma paixão direcionada, porque paixão ampla, pelo Carioca, o Paulista, o Gaúcho, enfim, o Brasileiro, como Nelson tinha, nenhum mortal irá. Perdoem a pequena sessão de nostalgia. Fez-se necessária para que entendam que a paixão está acima de qualquer parcialidade. Quando teremos um outro Nelson? Quando lerei outro apaixonado? A atmosfera do glorioso era perfeita. Conseguia equilibrar realidade e imaginário. Era tão apaixonada que não precisava ele ser subjetivo, escrever nas entrelinhas ou querer fazer qualquer tipo de lavagem cerebral para conseguir as opiniões que queria. Nelson era tão apaixonado que bastava escrever. Sim, bastava que Nelson escrevesse sobre o Botafogo do Mané e Nilton Santos que sentia-me eu, um Botafoguense nato. E Pelé? Subia eu mais um pouco no mapa, chegando ao litoral paulista ao ler Nelson analisar um "match" como o próprio intitulava uma partida do Santos. Chegava eu ao auge, ao apogeu, ao clímax, ao sei-lá-o-que, quando Nelson me contava como foi uma partida do Mengo no fim de semana e me descrevia nos mínimos detalhes de como a calorosa torcida Rubro-Negra agitava o Maracanã.
-É Felipe, e foi assim naquele domingo! Mais uma colossal vitória Rubro-Negra.
Contava-me Nelson.

Nelson exalava paixão por todos os poros de seu corpo, e viajava, via coisas onde ninguém via e levava quem quisesse ir, ao inimaginável. O sensacionalismo de Nelson não desaparecia nem em tal época, onde a censura era implacável, e as línguas cortadas ao falar o que a mídia não queria divulgado. Defendia ele, todas as Seleções Patrícias formadas desde que o inglês nos apresentou tal esporte. Enquanto o Brasileiro tinha a tal síndrome de vira-latas, de se menosprezar, chegar a miséria, estava Nelson, incansável escrevendo inúmeras crônicas de que éramos os melhores, que os ingleses (até então tidos como os melhores desportistas da época) eram uma piada. Todos riam. Nelson escrevia...

Não vislumbro, de maneira alguma, ler algo hoje em dia, numa segunda-feira seguinte ao espetacular domingo de clássicos cariocas no maior do mundo, à altura do que Nelson escrevia. Mas ainda em tempos, falta paixão. É simples, falta paixão. O futebol não é mais a namoradinha dos escritores e cronistas de hoje. Não por culpa dele. Ele continua mágico, indescritível e inenarrável. A Majestade de Couro, continua com sua silhueta de curvas perfeitas, fazendo o mesmo som orquestral ao roçar no barbante. Por onde anda a paixão? Foi completamente substituída pelo dinheiro? Não temos mais tesão (atribua, por gentileza e justiça esse temos os patéticos escritores esportivos de hoje), é tudo muito mecânico.
Não quero saber sobre puta-que-pariu de gomos de couro impermeáveis e o peso milimetricamente calculado da bola de hoje em dia. Era simplesmente suficiente saber com quanto carinho o jogador empurrou a pelota no barbante. Não quero saber o peso, altura e foda-se o IMC de uma equipe e seus substitutos. Era suficiente saber que 22 estavam ali, beijando a camisa e chupando laranjas no meio do match pra abrir o score e fazer o torcedor sorrir no bar. Não preciso saber a porra das medidas do campo. É suficiente saber que a grama está aparada e a pelota não vai abrir o bico por rolar de um lado ao outro do tapete verde. Que diferença absurda! Hoje, nossas peladas parecem mais um jogo de gestão, do tipo manager, faça seu clube ganhar dinheiro e ganhe o jogo. Clube empresa, transferências, patrocínios. Não aclama-se mais nem a seleção canarinho. Sim, é desrespeito. Crescemos, os mais novos, já com a cultura do Futebol investimento. Mas a Canarinho já foi, e como era bom, paixão. Não exagero e nem preciso ir tão longe assim como na época de Nelson para cair em contestação de que foi há muito, muito tempo atrás. Posso citar o folclórico narrador Silvio Luís. Tratava a grande área como cozinha, a bola como redonda, o arbitro como professor, um chute forte como sapato. Eu era novo sim, porém minha memória chega a apavorar-me. Lembro-me bem e de tudo. Como eram bons os jogos narrados por Silvio, na Band, da Seleção Brasileira de Masters. Como ele ria, e debochava dos adversários em plena narração, quando o nosso maroto Cafuringa se enfiava pela esquerda e metia aqueles dribles digno de palmas. Como exaltava o elástico que Rivelino aplicava em seus perseguidores e como gritava o nome do sortudo que abria o score:

-ÉEEEEEEEEE mais um gol Brasileiro meu povo! Confira comigo no replay! Foi foi foi foi foi ele!!! Jairzinho! O craque da camisa número 11. Quando eram jogados redondos 25 minutos do segundo-tempo!

E assim eu, moleque, em frente a TV, pulava, vibrava e vez ou outra inconsciente, chutava a bunda do cachorro que insistia em acomodar-se aos meus pés na hora do jogo.

Bom, assim era antigamente. Recuso-me a descrever os dias de hoje, até por todos
saberem e simplesmente, por faltar paixão.


*Nelson Rodrigues não enxergava direi­to. De longe, então, era incapaz de distin­guir Fulano de Beltrano. No Maracanã, que deixa o torcedor a léguas do campo, não conseguia ver o jogo sozinho. Nasceu em 1912 e morreu em 1980. No meio esportivo, era mais conhecido pela sua paixão pelo Fluminense, o Tricolor Carioca, também conhecido como Pó de Arroz. Nelson não limitava-se apenas ao mundo esportivo. Escreveu também grandes obras como A vida como ela é... O homem fiel e outros contos e O Casamento.

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